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06/07/2020 - 08h58m

CRÔNICA

Tire a sua máscara e mostre-me quem você é!

Por Cláudio Duarte

Estava recluso há oitenta dias por força da quarentena. Trabalhava em home Office e tudo o que precisava era solicitado por aplicativos.

Possessivo, fora abandonado pela noiva pouco antes do isolamento e ficou todo esse tempo sem namorar. Hoje queria ver alguém; estava ávido.

De máscara, entrou no carro e circulou pelas ruas de Palmas. Próximo ao shopping reduziu a velocidade; era incomum pouco movimento naquela área.

Naquele momento, além dele, só havia a bela garota de máscara amarela que caminhava a passos firmes em direção ao lago.

Passavam das 19 horas e fazia muito calor. Ele encostou próximo ao meio-fio, abaixou o vidro e ofereceu carona. A garota aceitou.

Obrigada, está mesmo um pouco escuro. Disse ela, ajustando a máscara ao rosto. A noite está quente e resolvi ir à praia; moro aqui perto.

Achou ela bonita, embora não pudesse ver totalmente seu rosto; e imaginou como seria por baixo daquela máscara; melhor ainda, por baixo daquela roupa.

- Acho que a praia está fechada, talvez não haja gente por lá. Disse ele, sorrindo. Eu também queria ver pessoas, me sinto carente.

- Que fofo! Os homens não costumam admitir carência.  Falou ela.

- Sou poeta. Enfatizou. Valorizo tudo que é sensível ao coração e transformo em letras as cores, os aromas e os sons que tocam a alma. E mudou de assunto. Eu achei a sua máscara linda.

- Só uso máscaras amarelas. Gosto da cor, e eu mesma faço. Afirmou ela.

- Por que você não vem comigo? Indagou. Vamos à outra margem do lago, hoje é lua cheia, e podemos conversar um pouco...

- Vamos sim. Eu também estou carente de companhia. Respondeu.

Dentro do carro, em local sombrio, eles meditam com os olhares fixos nos reflexos das luzes de Palmas nas águas do lago.

O vai e vem do banzeiro estimula pensamentos lascivos e sem se dar conta o casal se desnuda das máscaras, das roupas, carências e pudores, e se deleita nos braços de Eros. E mais de uma vez.

A imensa lua enrubesceu e São Jorge, em seu cavalo branco, despojou-se da lança para cobrir os olhos com as mãos.

A natureza, tímida que é, equalizou o ruído dos grilos, sapos e rãs, na vã tentativa de suplantar os gemidos do casal.

Sorrateiro e quente, o vento do cerrado trouxe o odor da paixão, fez rodopios e acalorou a relação.

Já indo embora, saciados, quis ver o rosto dela, estava muito escuro e ele não tinha apreciado suas feições.

- Tire a sua máscara e mostre-me quem você é! Disse, enfático e autoritário.

Mas ela negou-se. Falou que não queria se envolver e seria melhor que ele não soubesse nada sobre ela. Desceu do carro e partiu sem deixar vestígios.

O dia amanheceu e ele ainda não havia dormido e nem conseguia esquecê-la. Seus pensamentos, agora possessivos, se mostravam atordoantes e doentios.

Ela morava perto do shopping e ele iria fazer tocaia todos os dias até que em algum momento fatalmente a encontraria.

Acreditava que a máscara amarela era a única chave que poderia abrir as portas para a sua felicidade.

Dias após, veio o fim da quarentena. Foi descoberta a vacina. Agora todos podiam sair do isolamento e andar livremente sem máscaras. E todas as pessoas, por todo o mundo, estavam felizes; menos o poeta.

Ele chorou e fez versos apaixonados. Obcecado, fez simpatias e promessas, e procurou por seu amor todos os dias. Meses depois, desvairou-se.

O poeta não mais viu as cores, não sentiu o aroma das flores, não sorriu, não escreveu poemas, nem mesmo uma solitária lágrima escorreu por sua face.

Mascarado, cativo em sua mente insana, o alienado espera a próxima pandemia e anseia pela quarentena que trará de volta a garota de máscara amarela.

Em frente ao shopping, com as vestes imundas, a mente transtornada e o coração retalhado pela paixão avassaladora, seu olhar busca por ela.

Com uma rosa às mãos, ele repete todos os dias, enfático e autoritário, a mesma frase a todas as mulheres que chegam ao Capim Dourado.

- Use a sua máscara e mostre-me quem você é!

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